Chegam ao final no próximo sábado, 2, a série de 9 audiências públicas convocadas pela Prefeitura de São Luís para discutir a revisão do Plano Diretor da cidade.
As audiências transcorreram num prazo de praticamente 15 dias: tiveram início em 15 de janeiro e acabam dia 2 de fevereiro, com a realização de uma a cada dois dias, aproximadamente.
Esse período curto é um dos pontos críticos levantados por membros do Conselho da Cidade (Concid), instância responsável pela elaboração da proposta discutida em audiências e posteriormente levada à Câmara, que pode abrir novas discussões e posteriormente votar as alterações. A última revisão do Plano Diretor data de 2006, e já devia ter sido alterado (o Estatuto das Cidades, lei federal que rege a matéria, ordena que ele seja revisto a pelo menos cada dez anos – o Plano Diretor dá as diretrizes para a política de desenvolvimento urbano e rural da cidade).
O professor Élio Pantoja, do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA, um dos coordenadores do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (Gedmma/UFMA) e representante da Apruma no Concid (o Conselho é composto por representantes do empresariado, dos poderes públicos, das universidades e instituto, movimentos sociais e entidades de classe), explica que a proposta de revisão ora discutida, bem como o calendário de audiências, passaram pelo Conselho, mas não contaram com o voto favorável de todos os seus membros: “O Concid é composto por diferentes interesses lá representados, e o calendário apontado, com as audiências próximas umas das outras, com sua realização em período de férias, recesso e no início do ano, bem como o conteúdo da proposta, não foi consenso: nós, representantes de movimentos sociais e órgãos de classe, minoria no Conselho, perdemos no voto”, diz Élio.
Ele explica que o que faz com que a proposta que vem recebendo críticas de diversos segmentos sociais, tais como nas outras duas tentativas de revisão do Plano Diretor, ser justamente a que está posta para discussão resulta do fato de que, durante as reuniões do Conselho para sua elaboração, os representantes do poder público (Governo do Estado e Prefeitura da capital) votarem sempre apoiando as propostas de interesse do empresariado.
Esse apoio também foi verificado nas outras duas tentativas de alterar o Plano: em 2015, movimentos populares conseguiram, já perto da conclusão das audiências, comprovar a falta de transparência das audiências, completamente esvaziadas devido à falta de publicidade; no ano passado, o próprio representante do Ministério Público teceu duras críticas ao processo, que acabou suspenso, sendo retomado agora.
Mapas que invisibilizam
“O desenho dos mapas do macrozoneamento (que faz a delimitação entre as áreas rurais e urbanas) foi discutido, mas nossas observações não foram absorvidas. As discussões que interessavam aos empresários contavam com apoio dos representantes do Governo do Estado e da Prefeitura, e nós perdíamos. O último plano diretor, de 2006, comparando com esta proposta de 2019, nós perderemos muito de área rural (veja mapa da atual proposta abaixo: área em rosa seria urbana e a verde, rural). Esse aspecto chama atenção. Eles não mostram nos mapas as comunidades, que são desconsideradas, bem como a área da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim”, conta. A Resex de Tauá-Mirim é uma reivindicação das comunidades rurais do interior da Ilha, cujo processo está concluso nos órgãos ambientais federais desde 2003, mas nunca efetivada. A desconsideração apontada pelo professor Élio não leva em conta também decisão judicial que ordena ao poder público que se abstenha de promover alterações em seu perímetro até que uma decisão final sobre a Resex seja tomada pelas autoridades, de efetivar ou não essa demanda.
“Como representante da Apruma e membro do Grupo de Estudos, temos pautado a questão das comunidades, que serão as mais diretamente afetadas e penalizadas. Grande parte do que é a zona rural hoje (Plano de 2006) vai ser suprimida”, alerta o professor.
“No mapa proposto, não são mostradas as comunidades, num processo antecipado de invisibilização, uma forma de as pessoas não perceberem a existência das comunidades, que questionam, elas mesmas, ao perceberem isso nas ilustrações: “Cadê a gente ali que não aparece?”.
Ele conta que as discussões tanto no Conselho quanto nas audiências sobre esses aspectos têm sido tensas. Além do debate com os representantes da prefeitura sobre o que é ou não urbano ou rural, Élio diz que a sensível questão fundiária da cidade também não está contemplada na proposta apresentada. “Configura um conjunto de arbitrariedades tanto do ponto de vista legal quanto sobre o que está respaldado no Estatuto das Cidades e na própria Constituição Federal, sem publicidade sobre a proposta ou acesso às informações. Esses princípios são feridos nas audiências, que embora tiveram seu calendário votado, não têm legitimidade, já que parte dos membros, formada por empresários, somente aparecia nas votações que eram de seus interesses, como a questão dos mapas que suprimem zona rural”, denuncia.
Sobre a questão da publicidade e do acesso às informações nas audiências, a falta desses elementos também é alvo de crítica de outro pesquisador, o professor Luiz Eduardo, que, em artigo, revela: “as respostas do Instituto da Cidade (INCID) por meio de seu presidente José Marcelo do Espírito Santo, quando das indagações, elas em muitas ocasiões são vagas, às vezes em linguagem não adequada à população leiga e frequentemente não satisfazem os que levantam as questões, o que faz das audiências um grande teatro” (link acima).
Rapidez inexplicada pode ser catastrófica
Como nas outras duas tentativas de aprovação da matéria, cujo calendário apertado e falta de tempo para detalhamento apontavam a pressa da Prefeitura em ultrapassar a etapa das audiências, dessa vez também é notada pelo representante da Seção Sindical o esforço em passar logo a proposta para a Câmara.
Questionado se essa rapidez pode representar um risco ambiental, flexibilizando as áreas para serem ocupadas por indústrias de forma a oferecer riscos à população e às comunidades, o professor foi taxativo: Pode ocasionar uma catástrofe. “O risco existe. pela proposta que está sendo apresentada nas audiências públicas, vai ser legalizado algo que, em outras cidades, como Curitiba ou Vitória, que contam com um passivo de poluição ambiental resultante de atividade industrial mais elevado, elas têm tido uma preocupação em relação a isso, e São Luís está caminhando na direção contrária, para que projetos empresariais (armazenamento, logística, plantas industriais etc) possam ser instalados em cima das comunidades”, alerta.
Discurso perigoso, metodologia controversa
Élio apontou que consultores contratados por empresários têm dito nas audiências que a transformação de áreas rurais em urbanas prevista na proposta seriam benéficas para as comunidades, pois somente assim elas poderiam ter acesso a políticas públicas. “Esse é um discurso perigoso, que representa uma chantagem (somente será beneficiada se aceitar a mudança, como se comunidades rurais não pudessem ser alvo de benefícios). Na verdade o que há é o interesse claro de expansão da especulação imobiliária sobre esses territórios”.
Para a confecção dos mapas da proposta, segundo Élio informa, os técnicos da prefeitura não colheram dados nos locais. As imagens são de satélite, sem composição demográfica. “As pessoas não aparecem. Perguntamos aos técnicos da prefeitura sobre a metodologia utilizada, e eles dizem que tudo foi feito a partir de imagens. Não fizeram pesquisas com as comunidades. Como vai construir macrozoneamento rural e urbano baseando-se somente em mapas? É um problema metodológico, porque a pesquisa não foi feita. Usaram dados do IBGE, dados caducos, que não refletem a realidade da região, e as comunidades tiveram suas definições ignoradas. Ignoram, dessa forma, o espírito do Estatuto das Cidades e da Constituição, que contemplam a participação política qualitativa das partes interessadas no processo”.
Processo limitado
Segundo Élio, existem outras questões sem resposta. “Enfatizo o aspecto da zona rural até mesmo pela minha experiência com a pesquisa, mas há também outras questões, como mobilidade urbana, por exemplo, que também não aparecem de maneira efetiva. Em relação a isso, não foi cumprido o que está previsto no Plano Diretor de 2006, então como que via fazer a revisão de algo que não foi feito? A questão das ciclovias, por exemplo, assunto que somente foi tocado no Concid porque foi provocado pelo Movimento Pedal das Mina, que tem uma discussão com propriedade sobre o assunto, que não está pautado na proposta. O foco está apenas no macrozoneamento. Mesmo nesta questão não há dados detalhados, como por exemplo as áreas de recarga de aquíferos. Há dados da Caema que mostram que 40% do abastecimento de água vem de reservas, mananciais, poços (o restante vem do Sistema Italuís). Questionada sobre a dimensão dessas alterações na zona rural sobre essas reservas, se a prefeitura tem detalhamento disso, e eles não têm. Como vai fazer essa mudança numa cidade que já enfrenta racionamento, e autorizar redução de áreas rurais, onde está exatamente boa parte dessa água?”
Nesse caso, Élio aponta que se precisa proteger não apenas a reserva, o local de recarga, mas o entorno, a área de amortecimento, que vai sofrer impacto com a alteração proposta para contemplar a expansão de empreendimentos. O debate sobre isso foi suprimido, ele aponta.
Para o pesquisador, a oportunidade de revisão do Plano Diretor devia ser um momento para discutir benefícios para a cidade, mas não é o que está acontecendo. “Muito pelo contrário. Vai prejudicar, reduzir áreas verdes abruptamente. Vai legalizar a especulação imobiliária, abrindo possibilidade de usos, complicando a vida de muita gente”.
A última audiência está prevista para o sábado, 2 de fevereiro, na Associação de Moradores do bairro de Pedrinhas, (Rua da Paz, 1 – Pedrinhas), a partir das 16h. Élio aponta que essa ainda é uma oportunidade para ir, pressionar e questionar.