Ditadura Nunca Mais: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.
Confira o emocionante depoimento da antropóloga e professora Maristela de Paula Andrade, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMA, sobre sua experiência pessoal, ao lado de sua mãe (na foto, tirada pelo também antropólogo e professor da UFMA, Benedito de Souza Filho), na luta contra a ditadura:
Nesse dia 31 de março de 2019 e diante dos tempos sombrios que vivemos, me lembrei de minha mãe no tempo da ditadura, depois do golpe militar de 64.
Eu fazia História, na USP, e mamãe passou a acompanhar os acontecimentos políticos envolvendo os estudantes quando estávamos ainda na Igreja Metodista. Naquele tempo, idos de 1968, 1969,vários membros jovens dessa Igreja estavam lutando contra a ditadura e estavam sendo presos, perseguidos. Dois deles tinham ido panfletar contra a ditadura, na rua, atividade então altamente perigosa.
Deixaram uma mochila cheia de panfletos na casa de um tio. Esse parente abriu-a e chamou a polícia, denunciando os próprios sobrinhos. Foram presos em flagrante. O mais velho, Celso, apanhou muito e desenvolveu um câncer de estômago (ou teria sido intestino?) vindo a falecer, em 1969, assim que saiu da prisão, onde ele e o irmão ficaram por 9 meses. Uma ex-professora minha da chamada escola dominical, de nome Eleni Guariba, desapareceu. Seu corpo nunca foi encontrado. Mamãe aderiu à luta dos estudantes. Tinha sido catadora de café na região de Ribeirão Preto e, depois, operária têxtil na capital. Tinha enorme senso de justiça e, creio que, por sua origem social, era muito sensível às causas que abraçávamos então, sendo a principal a luta contra a ditadura implantada pelos militares.
Em 1968, eu já no primeiro ano da faculdade, mamãe resolveu ir às passeatas comigo, dizendo que era pra me proteger. Lembro-me de uma a uma enorme, já não me recordo se foi aquela após o assassinato de Edson Luís, estudante secundarista no Rio de Janeiro, ou a do estudante assassinado nos confrontos entre a Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antonia e do Mackenzie.
A concentração foi lá perto do Edifício Martinelli, entre a São Bento e a Av. São João. Nós gritávamos: “mataram um estudante, podia ser seu filho!”. Mamãe se emocionava e chorava muito. De repente, veio a repressão. Eu ainda não era muito experiente e não sabia que quando começassem a soltar foguetes era pra correr. Demorei um pouco pra perceber, mas vi quando Zé Dirceu pulou de cima de um ônibus, onde estava discursando. Aí começamos a correr, eu e mamãe, ela já era gordinha, teve que correr. Corremos nem sei pra onde, ali pelas ruas do
Centro de São Paulo, por dentro de umas galerias.
Aí um grupo grande estava subindo num prédio daqueles antigos, não me lembro mais onde era… Poderia ser em alguma daquelas ruas ao lado do então grande magazine Mappin? Nós subimos também, pelas escadas.
Quando chegamos lá, não sei em que andar havia uma sala grande, não me lembro bem, tipo um ateliê ou algo assim, onde já havia muitos “fugitivos”. Pessoas mudas que se olhavam meio apavoradas. De lá de cima, das janelas, víamos a cavalaria perseguindo e batendo muito nos estudantes que estavam pelo caminho e nos revoltávamos. Eu tinha uma bolsinha com amoníaco, que usávamos na época para os efeitos do gás lacrimogêneo e também muita bolinha de gude pra jogar no asfalto e derrubar os cavalos. De fato, lá de cima também víamos os cavalariços e seus animais tombando no asfalto.
Mamãe foi outras vezes comigo em outras passeatas, e também se levantou de madrugada para panfletar e, igualmente, cedeu sua casa para reuniões clandestinas. Escondeu em sua casa vários estudantes e levou-os para fugir do país pela rodoviária, inclusive andou sem seu fusca com a Catarina Meloni, que estava com prisão preventiva e era presidente da União Estadual dos Estudantes.
Ela levou também um casal da Igreja Metodista, Domingos e sua companheira, de cujo nome não recordo, que fugiram para o Chile. Chegou também a “cobrir pontos”, levando mensagens para pessoas escondidas em alguns lugares. Mamãe tinha senso de justiça, levava o cristianismo a sério e era muito corajosa. Nada a ver com as beatas batedoras de panelas que precipitaram o golpe de 64. Deixou de frequentar a Igreja Metodista porque, certa vez, foi pedir ajuda para contratar advogado para aqueles dois amigos presos, membros da juventude da Igreja. Na classe de “senhoras” da Igreja Metodista do Campo Belo, em São Paulo, havia uma que era parente do delegado Fleury e havia outras também muito reacionárias. Negaram o pedido de mamãe que, por este motivo, nunca mais foi à Igreja. Lhe parecia totalmente incoerente a atitude das suas companheiras de igreja.
Saudades de mamãe.
Maristela de Paula Andrade, antropóloga
Profa. PPGCSoc/UFMA