A transmissão ao vivo que a Apruma realizou na última sexta-feira, 24, com a participação da coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli, encontrou forte concorrência com o pronunciamento de Bolsonaro, que também acontecia naquela tarde, sobre a briga entre facções de extrema-direita representadas pelo presidente e pelo seu ex-ministro de Justiça, Sério Moro.
Ainda assim, a “live” contou com boa audiência, e o material, com toda sua relevância, que cresce em importância dado o momento de crises econômica e sanitária, ficará disponível no Facebook da Apruma e ao final desta matéria.
Sobre o tema da live, Dívida Pública e grandes fortunas versus falta de investimento nos serviços públicos, Fattorelli iniciou apontando a viabilidade da taxação das grandes fortunas. Ela citou que já tramita no Congresso o PLP 9/2019, que procura regulamentar o que dispõe a Constituição sobre o tema. Se implementado, ela destaca, a arrecadação prevista com a medida geraria em torno de R$ 40 bilhões.
Além desse, tramita ainda outro projeto, que visa a estabelecer o fim da isenção de lucros distribuídos aos sócios. Esta inclusive é uma bandeira a qual ela convida a categoria docente a aderir: a renda daí advinda gira em torno de R$ 80 bilhões ao ano. “Recorro a todos os sindicatos que estão abraçando a bandeira da taxação de grandes fortunas, que abracem também a tributação sobre o lucro, não podemos abrir mão dessa receita”, aponta.
“Somente esses dois projetos, que tratam de uma cobrança de uma camada privilegiada, arrecadaria R$ 120 bilhões por ano, em média. Isso é maior que o orçamento da Educação”, comparou.
Taxação
Fattorelli lembra ainda que, ao se consultar as faixas de contribuição do Imposto de Renda, facilmente se percebe que a última delas, o ‘topo da pirâmide”, é composto por apenas vinte e cinco mil pessoas, que declaram renda superior a R$ 320 mil por mês. “Todos eles têm patrimônio de dezenas de milhões de reais”, lembra. A proposta de taxação defendida pela Auditoria Cidadã da Dívida seria inicialmente cobrar 5% de imposto sobre a fortuna arrecadada, o que atingira apenas esse extrato social seleto. É sobre essa faixa que, de acordo com os cálculos, chega-se a R$ 40 bilhões a mais em arrecadação ao ano. É também essa faixa que proporcionalmente paga menos impostos.
Para a auditora, essa cobrança já poderia estar sendo feita há mais de trinta anos, já que há previsão constitucional para isso. “Enquanto não houver pressão social, não será cobrado. Precisamos abraçar essa causa”, conclamou.
A convocação da coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, que conhece com propriedade o tema de que trata por seu trabalho como auditora fiscal da Receita, é importante para os trabalhadores apontarem que sabem onde o Estado pode captar recursos, num momento em que se procuram meios de arrochar ainda mais os “de debaixo”. Um exemplo da importância dessa discussão, e de como os setores que pouco contribuem e que poderiam ser atingidos por essas medidas em vez de sempre jogar as contas nas costas do setor produtivo foi dado nesta terça-feira, 28: em painel organizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, o apresentador e pretenso presidenciável Luciano Huck demonstrou desconforto com a proposta. Segundo ele, taxar grandes fortunas faria com que houvesse mais evasão, disse sem saber explicar qual a relação entre uma coisa e outra (confira AQUI). Isso aponta a necessidade de se pressionar para que a Constituição seja atendida e a cobrança instituída.
Sobre um dos argumentos falaciosos apontados pelos que resistem à cobrança, de que isso levaria o extrato social milionário a retirar suas fortunas do país, Fattorelli aponta o levantamento de que apenas Brasil e Estônia não cobram esse tipo de tributo dos seus “muito ricos”. Colunas sociais, por exemplo, relatam com naturalidade casos de milionários brasileiros que mantêm residência oficial no país apenas para se livrar de serem taxados na Europa, onde passam maior parte do tempo (veja um desses casos aqui).
É preciso mudar o modelo
Para a auditora, o modelo de tributação em vigor no país acentua a má distribuição e a concentração da renda. “Aqui tá tudo invertido. O serviço público cada vez mais deteriorado por conta de sucessivos cortes, com a Emenda 95 (que congelou investimentos no setor por vinte anos), os ajustes fiscais. Por quê? Para sobrar mais dinheiro para o gasto com a dívida pública. O que acontece com a Emenda 95? É o estabelecimento de teto para todos os serviços do Estado. E o que ficou de fora do teto? O gasto com a dívida, que está por trás de todo esse sacrifício social, e das privatizações, desde Collor”, lembrou.
“Há vinte anos a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) investiga que dívida é essa, como surgiu, quem se beneficiou, quanto já pagamos, quanto a gente ainda deve e pra quem ainda deve. O que a gente descobriu? Que essa informação – a quem deve – é sigilosa. Só informam o grupo econômico”, explica, apontando que atualmente a dívida de mais de seis trilhões de reais está nas mãos de bancos. Para ela, somente o fato de uma informação dessas ser sigilosa já justifica e demanda uma auditoria.
Sobre as perguntas seguintes – que dívida é essa e quando surgiu – ela alerta que a ACD encontrou vários mecanismos (que alimentam a dívida) sem contrapartida alguma (sem que se esteja pagando algum benefício), o que contraria qualquer racionalidade: para se ter dívida pública, que vai ser paga pelo povo, tem que ter contrapartida.
Avançando nos desdobramentos desse esquema, ela aponta que parte do que é considerado dívida pública é na verdade uma forma de remuneração da sobra de caixa dos bancos. A sobra de caixa é a quantidade de dinheiro depositada nos bancos por todos os setores da sociedade.
Destrinchando ainda mais a sobra de caixa, ela corresponde a uma parte que é retirada dos depósitos a que os bancos estão obrigados a reter no Banco Central como forma de dar liquidez ao sistema (o chamado compulsório, que garante que o mesmo dinheiro não vá ser emprestado pelas instituições financeiras a diversas pessoas ou empresas). Tirando esse compulsório, o que fica é a sobra de caixa, que deveria ser “rolado” através do financiamento a pessoas e empresas, como empréstimos, o que necessariamente deveria ser feito a juros baixos, para que o dinheiro não fique parado nas instituições. A explicação é simples: seria mais vantajoso emprestar a juros baixos que manter esses recursos parados. Acontece que, no Brasil, as instituições encontraram uma maneira de ganhar fácil com esse dinheiro, que nem seria delas, mas dos depositantes.
No país, em vez de esses recursos contribuírem para o desenvolvimento financiando negócios e pessoas, o Banco Central aceitou receber os depósitos da sobra de caixa dos bancos, oferecendo-lhes em troca títulos públicos remunerados – ou seja, geração de dívida pública para subsidiar mais lucro para os bancos. Maria Lúcia aponta que somente esse tipo de operação já rendeu aos bancos, em dez anos, um trilhão de reais. “É a remuneração sobre um dinheiro que nem é deles. Nem poderia ser chamada de dívida pública, mas de usurpação de um instrumento público para privilegiar os bancos. É um mecanismo que cria dívida pública, mas sem contrapartida”, denuncia.
PEC 10
A auditora também explicou como um instrumento que vem tramitando sob a justificativa de amparar a sociedade ante a pandemia do Covid19 vem sendo manipulado para o esquema de geração da dívida pública.
A chamada PEC da Guerra foi alterada no Senado (por isso deve volta à Câmara), onde adquiriu a formatação que agora busca privilegiar o sistema da dívida. Vale lembrar que os servidores públicos por pouco não tiveram seus salários cortados, quando se tentou, por iniciativa do Partido Novo, inserir em seu texto esse tipo de previ~soa em plena pandemia, quando os trabalhadores do setor estão tendo em grande parte que manter os serviços para atender a população.
Entre os “absurdo”, como classifica Fattorelli, foi inserido no texto, agora, “o dispositivo que visa legalizar esse erro que já vem sendo feito há vários anos, que é a emissão de títulos da dívida pública para pagar juros. Juros são despesas correntes, não se pode emitir títulos para pagar isso“, alerta a coordenadora da ACD.
Como o tema vai voltar a ser discutido na Câmara, a ACD conclama a sociedade a se posicionar contra esse esquema e a cobrar dos deputados que rejeitem a PEC 10.
A Auditoria anota que o Estado já criou mecanismos legais que flexibilizam seu movimento financeiro, bem como a existência de recursos para atender a esse momento emergencial, e que, portanto é injustificável uma alteração na Constituição neste momento, ainda mais com esse sentido. Entre as medidas já tomadas que permitem o manejo de recursos de forma emergencial e que tornam a PEC injustificável estão o fato de Supremo Tribunal Federal já ter afastado a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para os gastos relacionados ao combate à pandemia do coronavírus. Além disso, o movimento aponta que há recursos disponíveis, não havendo portanto qualquer justificativa para emissão de títulos: mais de R$ 4 trilhões em caixa, dinheiro mais que suficiente e que pode ser usado para isso: saldo de R$ 1,4 trilhão na conta única do Tesouro Nacional; mais de R$ 1,7 trilhão em Reservas Internacionais, e cerca R$ 1 trilhão no caixa do Banco Central.
A ACD também lembra que é vedada alteração constitucional diante de um quadro de emergência, como estado de sítio, de defesa e intervenção federal, quando a participação popular e o funcionamento do Legislativo ficam prejudicados. Situação similar seria a de hoje, com a pandemia.
Em razão desses elementos, a ACD conclama a todos a se juntarem para barrar a medida.
As justificativas acima constam em carta a ser endereçada aos deputados que reanalisarão a proposta de emenda, para que se posicionem contrários a ela. A íntegra da carta pode ser lida no link na sequência deste parágrafo – também pode ser vista no link AQUI.
CARTA ABERTA PEC 10 – 27.04.2020
TODOS SÃO CHAMADOS A CONTRIBUIR: a carta acima pode ser enviada a todos os deputados, que também podem ser procurados em suas contas de Twitter para que se posicionem contra esse instrumento que, como demonstra a ACD, procura legalizar uma fraude que já vem sendo cometida contra as contas públicas.
Os contatos de e-mail de todos os deputados podem ser acessados aqui.
Os e-mails das lideranças da Casa podem ser acessados aqui.
As contas de Twitter dos deputados podem ser vistos aqui.
Outro alerta grave é que se aprovada, a PEC transforma o Banco Central em mero operador de balcão, sendo rebaixado a negociador de títulos da dívida. “Isso não tem nada a ver com a pandemia”, alerta Fattorelli na live da Apruma.
Outra questão grave é que a proposta coloca a possibilidade aos bancos de venderem papeis podres ao Banco Central (BC). “Quanto vai custar isso? R$ 972,9 bilhões, quase um trilhão de reais, e um valor que pode chegar a trilhões (aplicando-se a correção)”, alerta Fattorelli. Esse é o valor que os bancos têm em papeis que não interessam a mais ninguém e que a aprovação da Emenda pode repassar ao BC, que vai poder usar títulos da dívida para pagar aos bancos. “Se for aprovado, vamos assistir o estoque da dívida, que já está em R$ 6 trilhões, crescer rapidamente, para oito, nove, dez trilhões. se não estivermos muito atentos, vão colocar a culpa desse crescimento da dívida nos seiscentos reais da ajuda emergencial, dos hospitais de campanha, que não têm nada a ver com isso. Uma dívida que será decorrente de papeis podres a serem comprados pelo BC, que ninguém mais compra. Qual a lógica disso?”, indaga.
A justifica de crise para socorro a bancos não se justifica. A auditora lembra que, mesmo durante a crise de 2015, quando o Produto Interno Bruto (PIB) começou a cair, o lucro dos bancos nunca deixou de bater recorde. “Então, não há justificativa para uma operação como essa, a não ser dar mais dinheiro público para bancos, o que é inaceitável. É um escândalo usar esse período de pandemia, com as pessoas desamparadas para, no meio desse drama todo, essa usurpação, de colocar uma operação dessa na Constituição Federal, exigindo trilhões de reais de recursos públicos para doar para os bancos em troca de papeis podres. Conclamo a todos vocês a repudiar isso. Lutemos imediatamente por uma auditoria com participação cidadã. Quem vive de juro pode esperar. Quem vive de salário não pode”, convoca Fattorelli,
Mais esquemas demonstrados
Ainda durante sua fala aos professores da UFMA e à sociedade em geral, Maria Lúcia Fattorelli detalhou como o anúncio de que o Brasil quitou a dívida com o Fundo Monetário Internacional foi uma falácia. Ela apontou que ao pagar (uma parte) da dívida com o Fundo, emitiu-se títulos da dívida interna. “Não ficamos livres do FMI”, disse, lembrando que as políticas ditadas pelo Fundo ainda são seguidas à risca, governo após governo, sem titubeio.
Sobre os bancos, ela lembra que já agora na crise fortalecida pelo coronavírus essas instituições “já receberam um trilhão e duzentos bilhões de reais no dia 23 de março, com a desculpa de que precisam de liquidez para emprestar para as empresas com juros mais baixos”. Em vez disso, o que aconteceu foi que linhas de crédito deixaram de existir, e os juros, em vez de baixarem, subiram, porque os bancos jogam o risco da crise nessa conta.
“Para os pobres, o que foi dado? R$ 600,00. O governo queria pagar R$ 200,00, o Congresso aumento para R$ 600,00, enquanto o benefício devia ser de um salário mínimo! Se existe salário mínimo, esse é o mínimo! Não pode existir algo abaixo! Isso vai custar, segundo cálculos do próprio governo, menos de cem bilhões de reais. E para os trabalhadores? Chegou a ser editada uma Medida Provisória que suspendia salários por quatro meses. Olhem que violência! E para os servidores públicos?Tem a PEC 438, que prevê redução de 20% do salário, além de outra proposta, do PSDB de São Paulo, que também prevê redução de até 50%. E isso também atinge aposentados, porque tem a paridade, que é para o bem mas também para o mal”, lembrou, elencando ataques sociais enquanto é discutido medidas para fazer os bancos lucrarem ainda mais, mesmo em meio à crise.
O caminho
Em razão desse quadro, ela foi enfática: é preciso participação pública para exigir a suspensão do pagamento dos juros da dívida; reivindicar a auditoria da dívida pública e impedir a aprovação da PEC 10, além da luta pela taxação das grandes fortunas e fim da isenção dos lucros.
Sobre a PEC 10, em razão de estar em vias de aprovação, a luta contra ela é urgentíssima.
Sobre esse assunto, ela alerta, “não é um meio de se atender a uma calamidade social, mas uso do dinheiro público para comprar papel podre de banco, e não podemos aceitar isso“.
Como forma emergencial de se atender a quem precisa neste momento, propõe também: empréstimo a juro zero, com prazo de carência, enquanto durar a pandemia.
Ao findar sua fala, alertou que outros ataques não podem ser esquecidos, como a tentativa de instituição da carteira de trabalho verde e amarela, que deixa o trabalhador sem nenhum direito praticamente; a luta contra a reforma da previdência e seus efeitos; a derrubada também da Emenda 95 que congela o investimento público e que nesse momento agrava ainda mais a situação; as privatizações que entregam o patrimônio público e sucateiam a prestação do serviço; e as tentativas de redução salarial nos setores público e privado. Confira o vídeo:
https://www.facebook.com/apruma.secaosindical/videos/2694101240870801