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Artigo: "Lula e a democratização"

Atendendo solicitação, publicamos a seguir o artigo LULA E A DEMOCRATIZAÇÃO, de autoria do professor Saulo Pinto, do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão. Em contato com o docente, ele explicou que esta pretende ser uma análise preliminar, feita no “calor do momento” do duro processo que passamos nestas eleições, que significou, também, a luta contra o autoritarismo.

Saulo destaca os altos e baixos do frágil processo democrático brasileiro, em que partidos de centro-direita e centro-esquerda se revezam no controle do poder político democrático, ora com políticas sociais mais regressivas, ora com políticas sociais mais expansivas, mantendo inalterado o núcleo dominante da política econômica baseada no tripé macroeconômico do mainstream neoliberal. “Bolsonaro é apenas a expressão do deficit de democratização. A democratização deve ser o coração do programa de governo liderado por Lula“, pontua. A partir daí, o autor elenca pontos macroestruturais que considera essenciais neste novo governo.

Confira na íntegra (o artigo também pode ser baixado no link ao final).

Lula e a democratização

Saulo Pinto,
professor do Departamento de Economia da UFMA.

A vitória gigante de Lula contra Bolsonaro – e todos os seus abusos ilegais – é um feito notável num país marcado pela violência brutal da ditadura e pela escravidão. De alguma maneira, temos um país fraturado e incapaz de ser reconciliado com a democracia, pois a normalidade brasileira é a presença do autoritarismo e da violência. Bolsonaro é apenas a expressão do deficit de democratização e da falência das tentativas de conciliação que tentamos ao longo das últimas décadas. A democratização deve ser o coração do programa de governo liderado por Lula.

De fato, o que tivemos durante o período dominante do neoliberalismo foi uma hegemonia do ‘extremo-centro’, como sugere brilhantemente Tariq Ali, em que partidos de centro-direita e centro-esquerda se revezavam no controle do poder político democrático, ora com políticas sociais mais regressivas, ora com políticas sociais mais expansivas, mas mantendo inalteradas o núcleo dominante da política econômica baseada no tripé macroeconômico do mainstream neoliberal. A questão decisiva é que a pilotagem macroeconômica manteve inalterada a dominância política e ideológica do rentismo em detrimento de uma economia política democrática dos povos.

O resultado é dolorosamente conhecido por todos nós. O colapso da democracia é imediatamente resultante da incapacidade de mudar a ordem das coisas quando estivemos na direção dos governos. Com efeito, os efeitos das políticas sociais foram enormes e necessários, mas insuficientes para alterar as coordenadas básicas do mundo. O fascismo brasileiro é, grosso modo, efeito da incapacidade de mudar tudo. Parte significativa do povo pobre e da classe média oportunista, logo foram capturadas pelo fascismo brasileiro – bolsonarismo – que mobilizou o ressentimento recalcado em função do colapso da democratização truncada tentada pelos governos do PT.

O ódio à democracia foi produzido como distorção dos impasses fundamentais – exploração, dominação e formas de humilhação –, deslocando o problema da causa para o efeito, traduzindo tudo em explicações fantasmáticas. Para acessar à realidade, o espectro tem a função ideológica de ser a tradução de um problema estrutural que agora aparece como uma questão particular. A classe média não pôde suportar o enriquecimento exponencial dos mais ricos e, ao mesmo tempo, sentiu-se pressionada pelo crescimento relativo das condições de vida dos mais pobres que, através de políticas sociais inclusivas, conseguiram acessar o ensino superior e lugares importantes dentro da estrutura política do Estado brasileiro. No lugar da exploração de classes, temos a tradução dos conflitos como guerra cultural. Bolsonaro é a expressão dramática da normalização do horror. Como a realidade não pode aparecer completamente, o espectro cultural representa a distorção da causa obliterada que precisa se manter latente. Na política, por sua vez, a colonização da revolta contra o ‘sistema’ é o funcionamento do ‘desrecalque’, como sugere Ernest Bloch.

Dito isto, não podemos ter o fascismo brasileiro sem a mobilização paranoica da violência pessoal e do transe coletivo. Palavras-chave como ‘comunismo’, ‘ideologia de gênero’, ‘cidadão de bem’, ‘família tradicional’ etc., são a gramática política que permite que a mobilização ideológica seja eficaz e tenha impacto profundo de longo alcance. Com a preponderância das redes sociais na circulação dos afetos políticos, a mimetização e a simplificação do debate substituiu qualquer zona de compromisso compartilhado que permita as contradições autênticas e a resolução dos conflitos políticos. A lógica do engajamento despolitizado, através do poder da audiência de coachs, influencers, pastores neopentecostais, celebridades e sub-celebridades etc., têm mais influência hoje do qualquer partido político ou liderança substancial.

O filósofo franco-argelino, Alain Badiou, classifica a névoa contemporânea de ‘fascismo democrático’, pois, para ele, não temos uma interdição da democracia – sendo substituída pela ditadura em estado puro –, mas sua completa desfiguração. Ele elenca quatro características importantes: (1) crise da democracia e da política tradicional, (2) aumento exponencial da violência contra os mais vulneráveis, (3) mobilização do ressentimento das pessoas comuns e (4) a ausência de uma clara orientação comunista como alternativa de mundo. É curioso pensar este modelo axiomático com o que vivemos hoje no Brasil. Apesar de especificidades e variações históricas, experimentamos em maior ou menor grau todas as características elaboradas por Alain Badiou. O que quero dizer é que o fascismo não é um acidente histórico, mas assumiu o protagonismo do liberalismo político na contraposição ao ‘comunismo’ (no sentido amplo do termo, ou seja, das posições mais moderadas às posições mais radicais). A rigor, temos o paradoxo de ter no fascismo o ataque mais duro e sistemático ao centro do sistema democrático, enquanto o ‘comunismo’ aparece hoje como defensor do sistema dominante do centro político.

As consequências não são menores. Não podemos considerar que uma parte do povo pobre e oprimido que foi capturada ideologicamente pelo ‘fascismo brasileiro’ está errada. Eles estão reagindo a erosão do sistema dominante. Mas a questão aqui é que sua revolta está colonizada pelo fascismo. A causa decisiva está deslocada para o que realmente é apenas um efeito. A violência de gênero é resultado do machismo estrutural e não o feminismo pode ser responsabilizado pela agudização dos antagonismos de gênero. O feminismo é efeito da causa instaurada pela dominação machista. É provável que sem machismo, não teríamos feminismo. Marx já havia dito que a única maneira de resolver um antagonismo é eliminando o mesmo. A solução não é tão impensável assim. A dificuldade é transformar uma resolução teórica em solução política.

Nesse sentido, o que podemos fazer com a eleição de Lula? Não se trata de uma saída simples, confortável, totalmente pacífica. Ela vai ser difícil, complexa e precisa saber se mover numa conjuntura dificílima com um país fraturado. Todavia, Lula não pode não tentar. Quando observamos os números eleitorais, Lula venceu em 13 estados. Todos os estados do Nordeste, além de Minas Gerais, Amazonas, Pará e Tocantins. A vitória avassaladora no Nordeste e a derrota no Sul-Sudeste indica que Lula foi eleito pelos extratos mais pobres e oprimidos do povo brasileiro. Quando observamos os estados mais ricos, Lula só consegue ter votação expressiva nas zonas mais populares. Trata-se claramente de uma ‘guerra de classes’. Qualquer programa de Lula, embora ela seja o presidente eleito do país etc., não pode desconsiderar para quem deve governar. Ele deve governar para o Nordeste e para cada ‘nordeste’ que existe em cada estado e região do país. Penso ser a única maneira de, no longo prazo, virarmos o jogo de violência, truculência e ódio contra os pobres hoje instalado no país.

Para isso, proponho algumas ideias (e conceitos) macroestruturais:

(1) É necessário ter um plano econômico baseado na reindustrialização do país (médio e longo prazo), baseado na condução estratégica do Estado brasileiro, definindo prioridades e colocando os bancos públicos de investimento orientado por ‘missões’ (como sugere Mariana Mazzucato) na resolução dos problemas relacionados à geração de emprego e renda que atingem a população mais pobre do país;

(2) É necessário ter um plano emergencial de melhoria imediata nas condições de vida dos trabalhadores e do povo pobre, focando no preço da cesta básica, preço dos combustíveis e no combate a fome. É muito importante o governo Lula atacar positivamente sua base social e responder imediatamente aos anseios de mudança demandados legitimamente por ela;

(3) É necessário recriar o Ministério da Cultura e, combinado com o Ministério da Educação, fortalecer uma política cultural progressista através de incetivos públicos prioritários, baseada em valores democráticos e no acesso aos bens culturais disponíveis (cinema, teatro, música popular regional etc.) pela população brasileira;

(4) É necessário indicar Fernando Haddad para o Ministério da Educação e abrir uma mesa de negociação permanente com os sindicatos, estudantes e demais representações dos atores envolvidos com a educação pública brasileira, buscando estabelecer um plano de reconstrução das universidades e institutos federais (perpassando pela estruturação das carreiras e financiamento do funcionamento pleno das instituições), mas também focado na retomada do projeto de um Sistema Nacional de Educação que seja catalisador e articulador das demandas municipais e estaduais;

(5) É necessário ter uma política de ruptura com o neoliberalismo (base do ‘fascismo democrático’), que seja capaz de orientar a economia política para os interesses nacionais e populares (combater a inflação e os juros obscenos que alimentam o rentismo e aprofundam o endividamento da população). Lula não pode ficar refém dos interesses das oligarquias patrimonialistas e da elite financeira;

(6) É necessário criar uma política agroindustrial que fortaleça os sistemas agrícolas familiares (com política consistente de financiamento e assistência técnica governamental), em combinação com as grandes propriedades agrícolas. Não teremos ruptura abrupta, então, é importante aprofundar a desapropriação de terras improdutivas e destiná-las para a Reforma Agrária;

(7) É necessário elaborar uma política rigorosa de combate ao desmatamento e garimpo na Amazônia, defendendo os povos originários e seus territórios. Isso fortaleceria o governo Lula no cenário internacional e enfraqueceria uma parte da base social mais agressiva e violenta do bolsonarismo;

(8) É necessário combater à violência no campo contra lavradores, quilombolas, indígenas etc., combinando políticas públicas de fortalecimento de suas atividades econômicas com punição rigorosa aos criminosos;

(9) É necessário recriar o Programa Minha Casa, Minha Vida como um superprograma que articularia um plano abrangente de obras públicas (que permitiria aquecer a economia regional, gerando emprego, renda e consumo para milhares de trabalhadores) com o combate ao deficit habitacional que assola as grandes cidades brasileiras;

(10) É necessário fortalecer o SUS, priorizando sua eficiência e seu papel estratégico na produção de saúde pública, mas combinado com a reforma dos currículos da formação dos médicos. O que podemos observar no país é a formação médica desvinculada de valores éticos e de uma ideia de desenvolvimento social amplo;

(11) É necessário fortalecer e melhorar os programas de transferência de renda para o povo pobre através de uma política permanente. Mais do que nunca é necessário retomar o Projeto de Renda Básica de Cidadania para todos os cidadãos pobres;

(12) É necessário fortalecer o Itamaraty, para que ele seja um importante órgão de reestabelecimento das relações internacionais na direção da Integração Regional democrática (econômica, política e cultural), mas também nas relações Sul-Sul com países da África, China, índia etc.;

(13) É necessário ter uma política de Direitos Humanos, que basicamente combata o machismo e racismo estruturais (com política de salários iguais entre homens e mulheres, participação paritária na composição executiva das estatais etc.) bem como toda forma de discriminação contra a população LGBTQIA+. Podemos e devemos ter políticas públicas combinadas que permitam a mudança cultural da consciência atrasada do brasileiro médio e a penalização rigorosa da opressão violenta;

(14) É necessário elaborar uma política sustentável no setor de energia, gás e petróleo, na direção da constituição de uma economia verde que seria sustentada na criação de biorrefinarias para produção de biocombustíveis. Para isso, fortalecer a Petrobras seria prioritária no planejamento estratégico das ações do governo, combatendo rigidamente a corrupção e mantendo as indicações de seus cargos estratégicos sob critérios técnicos e funcionários de carreira da empresa pública;

(15) É necessário aprofundar a política ampla de governança democrática, valendo-se de robustos instrumentos de governo digital que permitam a democratização do acesso à informação, com transparência das políticas governamentais para combater a disseminação criminosa de fake news e, portanto, possa ser aprofundada a transformação digital do governo federal orientado pelo propósito público;

(16) É necessário que o governo Lula contraponha-se à política tradicional – sobretudo, do Centrão –, através da utilização dos mecanismos constitucionais de participação popular, como consultas públicas, referendos e plebiscitos para votar matérias de interesse popular para mudança do status quo;

(17) É necessário combater o monopólio da imprensa e da comunicação, fortalecendo a disseminação de rádios e veículos comunitários que expressem a produção e circulação de opiniões contra-hegemônicas. Além disso, precisamos regular e criar um sistema legal de responsabilização das redes sociais, pois, ao que parece, ela virou um campo aberto para o cometimento de crimes e todo tipo de ilegalidades.

(18) É necessário uma reforma profunda, estrutural e democrática no Sistema Nacional de Segurança Pública, Forças Armadas e nas Polícias Federais e Estaduais. Não podemos mais assentir que o braço armado do Estado atue de maneira inconstitucional, aderindo à ilegalidade e coagindo as próprias autoridades públicas e a população pobre e negra através do medo e da violência institucional.

São algumas ideias provisórias.

Por fim, a despeito da limitação de tais ideias – elas não esgotam, nem de perto, nossos reais problemas –, penso que são proposições macroestruturais basilares para o estabelecimento de um governo democrático e popular. Lula tem legitimidade e capacidade institucional para driblar as dificuldades e impor uma agenda de recuperação da dignidade das pessoas comuns, bem como de ‘um logo amanhecer’ como pensava Celso Furtado. A democratização é este longo processo de amanhecer, em que a superação do subdesenvolvimento somente pode ser elaborada com o aprofundamento da democracia e da participação política não-profissionalizada das pessoas comuns. A eleição de Lula é o sopro da esperança, o coração do novo tempo do mundo. Nossa tarefa política, ética e estética é defender o nosso governo dos fascistas e dos oligarcas patrimonialistas. O futuro dependerá da nossa capacidade de imaginação e de criação prática de um novo universo simbólico de igualdade, liberdade e fraternidade.

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Lula e a democratização

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