As notícias que chegam até nós da situação do litoral paulista, especialmente do município de São Sebastião, são bem tristes. Já foram contabilizados 50 óbitos, 2.251 pessoas desalojadas e outras 1815 estão desabrigadas. É uma história que se repete todos os anos no verão brasileiro, são tragédias anunciadas: enchentes, alagamentos, deslizamentos, inundações e enxurradas ocasionadas pelas precipitações. Em maio de 2022 aconteceu na região metropolitana do Recife, entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022 atingiu dezenas de municípios no sul da Bahia e norte de Minas Gerais e em fevereiro do ano passado a destruição foi no município de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro.
O quantitativo pluviométrico no litoral de São Paulo entre o último sábado e domingo foi gigantesco. Neste intervalo de pouco menos de 24 horas, choveu só em São Sebastião, mais que o dobro da média para todo o mês de fevereiro, foram impressionantes 683mm. Para ficar mais claro, 1mm equivale a 1 litro de água por metro quadrado, ou seja, choveu no município 683 litros de água por metro quadrado. Um evento extremo explicado, a priori, pelo encontro de dois sistemas climáticos diversos na Serra do Mar, de um lado uma frente fria, de outro, umidade e calor aliadas a uma zona de baixa pressão e ao aquecimento da água do mar, o que ocasionou rápida evaporação e formação de nuvens chuvosas.
Por mais extremos que sejam estes eventos climáticos, com seus rastros de morte e destruição, o tamanho da tragédia pode ser mensurado pelos usos destinados aos territórios atingidos, que são essencialmente comandados pelos poderes político e econômico. Como nos ensinou o saudoso geógrafo Milton Santos, o território só pode ser compreendido pelos usos dados através de diferentes agentes, por isso ele é abrigo: lugar das coexistências, base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais da vida. Mas o território também pode ser recurso, capturado por forças capitalistas, destinado à realização da acumulação, do lucro e do mais-valor.
O entendimento da urbanização brasileira e toda a exclusão que tem provocado passa pela História dos usos territoriais, visto que as cidades no país se transformaram em negócio bastante lucrativo no último século, fato que tornou os centros urbanos cada vez mais desiguais, com tácito apoio do Estado. O resultado foi uma divisão socioespacial inédita: num extremo, uma classe dominante rentista, dona de vastas porções do tecido urbano e seus empreendimentos, da qual extrai suas riquezas via alugueis e superexploração do trabalho. No outro extremo, para usar uma expressão do historiador Mike Davis, existe o climatério urbano, milhões de despossuídos, a maioria negros e negras, vivendo na pobreza e na miséria, em habitações com materiais frágeis, próximos à lixões, em encostas de morros, em áreas periodicamente inundáveis, convivendo cotidianamente com a poluição e o mau cheiro dos esgotos e excrementos. Populações desprovidas de dignidade e cidadania.
Há, portanto, uma tensão permanente entre esses dois extremos, o que inclui também a esfera das hierarquias morais, representada, entre outras coisas, por ódios, ressentimentos, racismos e intolerâncias. E são as populações empobrecidas as que mais sofrem com a omissão, os mandos e os desmandos dos poderes públicos instituídos, já que são sujeitos invisibilizadas e marginalizadas pelo Estado. Seus dramas e lutas só aparecem na grande mídia quando acontecem as “tragédias naturais”. Nas imagens, muitos escombros, lama, dor e choro, além das promessas políticas e da solidariedade.
As tragédias sociais causadas pelas fortes chuvas no Brasil não ocorrem por ausência de planejamento urbano, aliás, há grande quantidade de dispositivos, normas, planos setoriais, leis e ideias sobre como intervir para melhorar os espaços citadinos, o problema é que falta gestão e também compromisso político com as populações excluídas. Veja os exemplos dos Planos Diretores e Leis de uso, parcelamento e ocupação do solo, elas são comandadas pelo capital financeiro via mercado imobiliário e construtor no Brasil, que em aliança com os poderes públicos, escolhe criteriosamente os territórios que pretende intervir nos centros urbanos, não importa se isto vai ocasionar destruição ambiental, expulsões, mortes ou poluição, é preciso especular, reproduzir e acumular.
É necessário combater a ideologia economicista de que uma cidade, para se desenvolver, deva se organizar apenas em torno de atividades capitalistas e seus empreendimentos imobiliários. Não se pode normalizar um imenso contingente urbano sobrevivendo nas piores condições, fingir que não existem. São vidas, são famílias inteiras que merecem oportunidades, moradia, trabalho, escola, saúde, lazer e cultura. No entanto, da mesma forma como já disse o pensador alemão Anselm Jappe, que o capitalismo faz pessoas morrerem de fome no meio da abundância alimentar, afirmo que tais grupos sociais estão morrendo soterrados bem diante do excesso de terras e habitações disponíveis nas cidades do país, que de forma indiscriminada, são destinadas à especulação imobiliária e à constante valorização de seus preços pelo rentismo.
Por: Luis Eduardo Neves dos Santos
*Texto publicado no Jornal O Imparcial, edição do dia 24/02/2023