A escravidão teve seu fim, do ponto de vista formal e legal, há 132 anos com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Essa medida não foi fruto da bondade da Monarquia brasileira, mas fruto da resistência do povo negro. No entanto, na dimensão social, econômica e política está inacabada até hoje. Por isso, há décadas, os movimentos negros caracterizam o 13 de maio como o dia da abolição inconclusa.
A lei que libertou negras e negros da escravidão, não trouxe reparações históricas e não criou condições de inserção social, deixando milhares de libertos abandonados, sendo, mais tarde, marginalizados de qualquer processo de desenvolvimento.
Essa exclusão histórica fica ainda mais evidente nesse momento de pandemia do novo coronavírus. Alguns dos poucos levantamentos já realizados sobre o impacto da doença na população negra mostram que essa parcela da sociedade está entre os que mais morrem de covid-19.
Dados do boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo divulgados em 30 de abril mostram que o risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior em relação aos brancos. No caso de pardos, esse risco é 23% maior. Questões socioeconômicas, como ausência de saneamento básico, insegurança alimentar e dificuldade de acesso à assistência médica, aumentam o risco de adoecimento e morte de negros e negras, que compõem grande parte da população pobre no Brasil.
Reparação histórica
Maria Raimunda Soares, professora de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF/Rio das Ostras), explica que o 13 de maio não se constitui como uma data comemorativa para os movimentos negros, pois não se configura de fato como uma referência de libertação dos negros.
“Como bem registrou Clovis Moura, o trabalho escravo modelou a sociedade brasileira durante esse período, atribuiu-lhe seu etos dominante, estabeleceu as relações fundamentais de produção na sociedade e também direcionou o tipo de desenvolvimento subsequente das instituições, de grupos e de classes no pós-abolição. É o que a gente chama de racismo estrutural. O racismo estrutura as relações sociais contemporâneas, portanto ele através a questão social em suas diversas expressões. Logo, é difícil falar de uma ruptura com o modelo escravocrata”, acrescenta.
Segundo ela, é esse etos sociocultural que vai direcionar a constituição das nossas instituições no pós-abolição e das classes e relações sociais no país, o que faz do Brasil estruturalmente racista e vigorar de forma tão acentuada no Brasil o racismo institucional também.
Para a docente, que coordena o Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB/UFF) em Rio das Ostras (RJ), quaisquer medidas de reparação e inclusão precisam ser pensadas com a participação dos sujeitos envolvidos, através dos movimentos sociais e populares que os representam. “Já há uma série de propostas que emergem desses movimentos e todas elas convergem para a ideia de que qualquer reparação, por mais tardia que seja, pois já se passaram 132 anos, têm que se dar através de políticas públicas”, explica.
Maria Raimunda ressalta que a população negra no Brasil é a que está sujeita aos maiores índices de violência, é a que ocupa os trabalhos menos remunerados, é a que se encontra fora da educação formal, fora das universidades, é a que mais sofre homicídios no país e é a que está encarcerada.
“Quaisquer medidas de reparação têm que incidir nessa realidade. E, para isso, têm que ser estruturais, têm que mudar ou tocar, concretamente, a estrutura da sociedade brasileira. Essas políticas devem considerar que a população negra no Brasil se encontra naqueles setores que têm sido mais oprimidos e explorados pelo Capital e que têm, de fato, pagado com a vida e com seu sangue as crises do Capital’, salienta.
Impactos da Pandemia
A ausência de políticas públicas estruturadas voltadas para as populações pobre e negra aprofunda drasticamente os impactos da covid-19, tanto nas condições de saúde e sobrevivência econômica de milhões de brasileiros.
A professora da UFF ressalta que apesar das subnotificações, os dados já mostram que a população negra já vem sendo a mais atingida pela pandemia. “Obviamente que a gente sabe que os dados demonstram não correspondem à realidade, ela é muito mais cruel. E, obviamente que, quando se trata de subnotificação quem não vai ser contabilizado, quem não vai aparecer nas estatísticas são os corpos negros e periféricos”, reforça.
Dados levantados pela Agência Pública de Jornalismo apontam que em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morreram por contaminação pelo novo coronavírus no Brasil quintuplicou. De 11 a 26 de abril, mortes de pacientes negros confirmadas pelo governo federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930. Além disso, a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada por coronavírus aumentou para 5,5 vezes.
Já o aumento de mortes de pacientes brancos foi bem menor: nas mesmas duas semanas, o número chegou a pouco mais que o triplo. E o número de brasileiros brancos hospitalizados aumentou em proporção parecida.
De acordo com A Pública, a explosão de casos de negros que são hospitalizados ou morrem por Covid-19 tem escancarado as desigualdades raciais no Brasil: entre negros, há uma morte a cada três hospitalizados por SRAG causada pelo coronavírus; já entre brancos, há uma morte a cada 4,4 hospitalizações.
“Esses são dados que reforçam o que muitos pesquisadores e movimentos já indicavam e já sabiam, que as condições estruturais de reprodução e as condições sociais econômicas tornam o índice de mortalidade da covid muito maior entre os negros do que entre brancos. É muito emblemático que a primeira morte no Rio de Janeiro pela covid tenha sido de uma empregada doméstica negra, moradora de uma comunidade e que trabalhava na zona sul do Rio. Isso desmente uma ideia que foi difundida no início da pandemia de que o vírus seria democrático, de que atingiria indistintamente brancos e negros, pobres e ricos, trabalhadores e não trabalhadores. Vemos que isso não é verdade”, acrescenta.
Ela aponta ainda que pesquisas mostram que o índice de mortes por covid aumenta nos bairros onde o número de negros, quais sejam os bairros pobres, favelas e conjuntos habitacionais. “Essa desigualdade de contaminação e de mortes também leva tanto o governo quanto a classe dominante a pedir pelo fim do distanciamento e isolamento social, porque sabem que os mais atingidos serão pessoas da população negra e das periferia. Há uma indiferença com a morte de pobres e negros, e isso expressa a necropolítica desse governo e o racismo estrutural e institucional que vigora no país”, afirma a docente da UFF.
Universidade e sociedade
Para marcar os 130 anos da abolição inacabada, o ANDES-SN lançou em 2018 uma edição especial da Revista Universidade e Sociedade. O volume especial 62 aborda a resistência do povo negro e a luta por reparação. Leia aqui.
Matéria originalmente publicada em andes.org.br