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#AprumaDebate: Educação do Campo e suas conexões com a Universidade e a luta por direitos como essenciais para a superação do atual modelo de sociedade

“Eu não posso respirar”.

80 tiros de Taurus.

Vidas Negras Importam.

Vidas Indígenas Importam.

Vidas Camponesas Importam.

Com essas palavras, a professora Zaira Sabry Azar, do Departamento de Serviço Social da UFMA, deu início à transmissão da Apruma no último dia 4 de junho, que contou com a participação de Roseli Salete Caldart, referência em Educação do Campo, doutora em Educação (UFRGS), Assessora do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa Reforma Agrária, e membro do Coletivo Nacional de Educação do MST.

O assunto tratado naquela tarde foi “Universidade, Educação do Campo e os desafios na atualidade”. A “live” da Apruma nessa primeira semana de junho marcou ainda a realização da VII Jornada Universitária da Reforma Agrária, JURA/MA. Nesse sentido, a mediadora Zaira saudou movimentos, sindicatos e demais organizações que lutam pela reforma agrária no país, lembrando também, naquele momento, os mais de 32 mil brasileiros vitimados pelo Covid19.

Assim sendo, antes de passar a palavra a Roseli, a professora Cacilda Cavalcanti, vice-presidente da APRUMA, também participou da transmissão, para saudar RAIMUNDO VITAL, referência na luta camponesa, morto naquela primeira semana de junho. Acompanharam a transmissão, ao vivo, dezenas de pessoas em diversos locais do país, que seguem assistindo ao importante material sobre Educação do Campo, publicados nas redes da Apruma e que segue ao final deste texto. Como sempre, a transmissão conta com tradução na Língua Brasileira de Sinais.

Roseli iniciou falando de sua satisfação em estar participando da VII Jura, ainda que virtualmente. Com isso, ela ressaltou a oportunidade que a tecnologia dá para aproximar as pessoas, mas pontuou que esse meio não substitui a presença, ainda mais quando se trata de Educação. “Somos contra a investida perversa e mercantil de considerar que a tecnologia, por ser um recurso, possa substituir um processo educativo real”.

22 anos de um campo cuja origem na verdade é ancestral

 Sobre a Educação do Campo, ela pontuou a relação sua relação com a questão agrária. “Esse vincular educação com terra, com a luta pela terra, com a preservação da natureza é exatamente um dos distintivos que demarcam, que caracterizam a Educação do Campo. Essa conexão é preciosa, cada vez mais necessária, ainda que nem sempre explícita”.

Para ela, ao se pensar os desafios da Educação do Campo, é necessário sempre reverenciar sua demarcação histórica. “São 22 anos de Educação do Campo. Mas 22 anos exatamente do quê? Porque se nós pensamos nas raízes da Educação do Campo, logo vamos nos dar conta de que elas são muito mais antigas do que isso. Se pensarmos a raiz indígena, ancestral, vem de longe; se pensarmos nas raízes quilombolas, também; na raiz camponesa; se nós pensarmos na luta pela terra, é tão antiga quanto à decretação da propriedade privada da terra: também não é nova; se nós pensarmos a própria ideia da Educação voltada a processos de transformação social, emancipatória, também é tradição antiga”.

“Então o que mesmo a gente comemora de 22 anos da Educação do Campo? Na verdade, a novidade da Educação do Campo não está em cada um de seus componentes, mas sim no tipo de conexão que ela faz. Ela juntou coisas, ela combina coisas, algumas delas, inclusive, historicamente, inusitadas. Pensemos nós: a conexão, ou a articulação entre comunidades camponesas, e debate de políticas públicas; a conexão entre organizações de luta pela terra e organizações camponesas que pautam a educação no seu trabalho, na sua agenda de lutas. Pensemos nessas organizações, nas próprias comunidades camponesas discutindo projeto educativo, assumindo a condição de sujeitos de pensar, de organizar, de gerir os seus próprios processos formativos. E pensemos na inusitada conexão entre universidades públicas, organizações camponesas, escolas do campo… digo inusitada porque feita de uma forma – essa é uma marca importante, que merece um grande destaque, esta relação, esta conexão entre universidades públicas, movimentos sociais populares, organizações camponesas, feita numa forma que não se conforma com a divisão de trabalho que costuma ser instituída quando essas relações acontecem”.

Ela explicou que isso significa que a Educação do Campo tem se desenvolvidos nesses 22 anos não aceitando que a divisão de tarefas seja por sujeito. “Ou seja: aos movimentos sociais cabe lutas, á universidade cabe produzir conhecimento, às comunidades camponesas cabe realizar as práticas, seja de agricultura, à escola cabe realizar as práticas educativas. Não é assim que a Educação do Campo tem construído o seu percurso, a riqueza de suas práticas. Reconhecemos que existe, sim, uma especificidade de tarefas O mesmo debate tem sido feito sobre a agroecologia, pensada como prática, como luta, como ciência. Se a gente pensar na Educação do Campo ela também tem prática; ela é fundamentalmente luta – ela começou como luta pelo direito à educação – e ela é, como a própria Zaira destacava na entrada de nosso diálogo, ela é produção de conhecimento, ela é ciência, ela é teoria pedagógica. Tarefas que não se fazem ao mesmo tempo, que têm especificidades que não podem ser perdidas, mas que podem ser feitas por todos os sujeitos envolvidos na Educação do Campo: comunidades podem produzir conhecimento, professores universitários podem participar da luta, como têm participado da luta, e podem fazer feiras de reforma agrária, de alimentos. Você tem comunidades que podem discutir políticas públicas. Ou seja: esta é a, friso aqui, uma riqueza que nos ajuda a pensar nos desafios que temos pela frente”.

Segundo Roseli, são justamente essas conexões que vão aparecendo que mostram também quais serão os desafios, apontando também que são relações permeadas de tensões, que vão surgindo durante o processo.  “Esse é um patrimônio que não podemos deixar morrer”, e que vai contra a lógica dominante, que tenta se fazer impor nas próprias universidades, tentando afastar isso, mas esse é um patrimônio de conexões pelo qual vale a pena lutar, frisou.

Uma outra marca inusitada característica da identidade da Educação do Campo é a forma de tratar a relação entre a especificidade dos processos sociais nos quais esses sujeitos estão inseridos, mas sem se afastar da totalidade do processo social no qual estas discussões se inserem. Para ela, isso evita ver a prática da Educação do Campo como um “gueto”, como uma prática em paralelo, estranha ao cotidiano da academia, por exemplo. Isso também coloca um ingrediente de forte tensão no desenvolvimento deste campo do saber.

Como metáfora dessa conexão tensa entre o campo e a universidade, ela se utilizou da figura de que é preciso ter a coragem de “entrar na jaula do tigre”, e não ficar ao largo, em paralelo, e tentar resolver de outro modo, no sentido de: disputar políticas públicas (pelos sujeitos que fazem a Educação do Campo); disputar projeto educativo, e não se conformar a um projeto educativo que se tentar impor; confrontar o agronegócio, e não fazer uma prática de agricultura marginal, paralela, mas sim disputar projeto de agricultura; disputar projeto de educação, disputar política educacional. “Penso que é exatamente nessas características, que são a novidade histórica da Educação do Campo, que nos permitem pensar quais são os desafios, quais são as conexões necessárias na relação com as questões da situação atual”.

Ela ressaltou que essa tríade da Educação do Campo – política pública, questão agrária e educação – não compõem uma justaposição, mas uma interconexão. “Algo mais complexo, mais tenso, mas justamente essa é a novidade”. Não é que uma coisa seja a luta pelo direito, outra a questão da agricultura e outra o projeto educativo, “não: é exatamente a interconexão dessas dimensões que caracteriza a Educação do Campo”.

“O plano da luta por direitos, que foi exatamente o que deu início à Educação do Campo enquanto articulação desses sujeitos e desses processos, pelo direito à educação, e o momento em que nós estamos: se num primeiro momento, quando nós constituímos a Educação do Campo, a força, o mote da nossa luta era pela própria posse de direitos, exatamente porque nós estamos numa forma de sociedade em que, ainda que se fale da Educação como um direito universal, ou que se falava, a população do campo, as comunidades camponesas, não faziam parte desse direito sequer no imaginário delas… A posse desse direito foi o mote inicial da Educação do Campo. A posse do direito é um avanço civilizatório nos limites de uma sociedade cuja realidade é: pode-se admitir a posse dos direitos, desde que a realidade não permita realiza-los na prática. A posse do direito é um princípio abstrato, formal: ‘todos têm direito à terra – desde que tenham direito para comprá-la – como a maioria não tem, na verdade o direito à terra não se realiza para a grande maioria das pessoas. Por isso trago aqui para reflexão, jogando um pouco com as palavras, que na verdade o momento que nós estamos é de retrocesso da própria ideia da posse dos direitos. Mas o momento que nos estamos é de radicalizar a luta pelo direito de posse, e não a posse do direito (apenas): direito de posse da terra, direito de posse da saúde, direito de posse da educação… esse direito de posse passa pela luta, pela mobilização para não perdermos o que já conquistamos materialmente. A realidade do direito conquista. As escolas que construímos, as escolas que impedimos de fechar, os cursos de formação de educadores, o PRONERA – nós sempre dissemos: o PRONERA não é de governos, o PRONERA é conquista de movimentos sociais, é conquista de organizações, nós conquistamos o PRONERA, ele não pode ser perdido; os cursos, as nossas licenciaturas Educação do Campo – esses cursos que ensaiam novas relações, que constroem coletivamente projeto educativo, que se coloca na direção da emancipação… nós não podemos perder, sob pena de um retrocesso GIGANTE, porque vamos perder a matriz a partir da qual nós precisamos coletivamente avançar. Então nós não temos outra agenda: nós estamos em luta, estamos mobilizados para o direito de posse do que é nosso, a nossa educação, a terra para quem nela trabalha, os alimentos saudáveis que produzimos para todos”.

Num movimento dialético, ela nota que o momento atual fez com que diversos atores do campo popular se aproximassem mais. “A realidade do fechamento de escolas, que proporcionalmente se fecham mais no campo, também é uma realidade urbana, e isso nos aproximou”, disse, exemplificando a articulação entre segmentos da classe trabalhadora. “Essa articulação que vem acontecendo, que vem crescendo, que vem se fortalecendo, entre organizações do campo e da cidade para questões de ambas, por que elas são do interesse de todos, isto é uma conexão que projeta futuro, e nós precisamos cultivar, nas práticas e no nosso próprio debate. Ao mesmo tempo que, também está posto como desafio para nós que estamos no âmbito da Educação do Campo, mergulhar ainda mais nas potencialidades da nossa especificidade: se a luta por direitos é uma luta de todos, e ao mesmo tempo é uma luta particular dos diferentes sujeitos, a construção desse mote, da própria reforma agrária popular, é um mote muito significativo para nós e que nos orienta muito: nós precisamos construir alternativas para esse sistema que nós já analisamos que precisa ser transformado pela raiz. No momento que nós estamos da realidade, o campo passar a ter um lugar mais significativo do que já teve nesse processo de construção de alternativas”.

As potencialidades da Agroecologia

Para ela, uma das conexões mais potentes que se estabeleceram com a Educação do Campo é a feita com a Agroecologia. Essa conexão fortalece a agricultura camponesa – dito em sentido amplo. Para ela, a Agroecologia consegue colocar a agricultura camponesa numa dimensão para se pensar um projeto de agricultura que possa superar a lógica estruturante da sociedade capitalista, baseada na exploração, inclusive da natureza, e na alienação. Uma lógica que está em crise – crise que gera uma expectativa de mudança que requer alternativas. Nesse sentido está a potência da Agroecologia, que coloca, inclusive, a luta pela terra em outro patamar, ampliando seu significando para ser também uma luta contra a expropriação das terras indígenas e quilombolas; que fala da função social da terra, mas que fala também de sua função ambiental, da forma de uso, da forma e da lógica de agricultura, que atenda às necessidades do ser humano, sem inviabilizar a própria vida do ser humano e das próximas gerações. Ela explicou que essa é uma discussão que já está entrando no debate da Educação do Campo, e que precisa ganhar mais força.

Projeto Educativo

A dimensão educativa desses processos precisa ser potencializada como “desalienação”. Assim, deve abarcar também questões como gênero e raça, que não estão desvinculadas e precisam ser tratadas nesse processo. “O projeto educativo deve ser pensado como importante para o campo, mas que dialogue com os desafios que são do conjunto da sociedade. Nós podemos construir, juntos, cada um desde a sua especificidade, experimentos reais que nos indiquem como pode ser o futuro da educação, da agricultura, da sociedade”.

Ela lembrou que as diversas lutas se inserem na questão de uma outra batalha, a da luta por uma educação que ajude a reconstruir as relações sociais deterioradas pela forma de sociedade capitalista que temos hoje. No caso da Educação do Campo, relembrou, não pode ser esquecida a conexão entre os diversos sujeitos que defendem este projeto de educação, que diz respeito à própria vida.

O debate em sua íntegra pode ser acompanhado a seguir:

https://www.facebook.com/apruma.secaosindical/videos/2983484208436349/?v=2983484208436349

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