DIREITA, VOU VER! EM FRENTE, MARCHE!
Carlos Augusto Scansette Fernandes[i]
Ontem, 2 de março de 2021, terça feira, precisamente às 13:17, professores e demais trabalhadores da Universidade Federal do Maranhão foram finalmente colocados diante do real. Porém, para uma infelicidade ainda pouco compartilhada, é provável que a grande maioria desse contingente sequer se dará conta. Talvez não seja tão arriscado dizer que nesse dia e nesse horário o míssil atingiu seu alvo em cheio. Que a história se faça!
O estado de pandemia decorrente da ameaça iminente de infecção e de letalidade por um vírus, dentre outras situações, tornou quase que totalmente invisível um outro estado endêmico que o campo acadêmico desenvolveu e continua a reproduzir tal como um frenesi. Faço referência aqui às noções de produção acadêmica e de produtividade individual dos professores. Velocidade, agitação, romarias nos corredores da pro reitoria de pesquisa, infindáveis reuniões, metas a serem estabelecidas, exigências a serem cumpridas, produção, produtividade, papers, artigos, apresentações e participações em seminários e eventos de toda natureza, relatórios … e mais recentemente lives, lives, lives, encontros remotos, certificações, etc. Será que era disso que falava o poeta Gonzaguinha ao dizer que a vida do homem é o trabalho? E que sem o seu trabalho, não tem honra? E que sem a sua honra, se morre, se mata? Será isto um suicídio social em doses homeopáticas?
E o que dizer da expressão cunhada pelo estudioso da América Latina Rui Mauro Marini: a superexploração do trabalho. Era isso que ele apontava no fim da primeira metade do século passado. O que mudou? Tal como disse o velho Marx ao tratar da chamada acumulação primitiva do capital: é uma simples mudança de forma. Já não é mais tão somente o capital quem explora e expropria. Na verdade, cada individuo está sendo cooptado e tende a tornar-se o explorador de si mesmo. Talvez seja pertinente lembrar o filósofo Soren Kierkergaard e inferir: eis o novo desespero humano.
Paradoxalmente parece ser um desespero suportável, aceitável, prazeroso, produtor de gozo e de regozijo, narcisista, elitista e hierárquico. E ainda assim mesmo efêmero, porém contingente do aqui e do agora. Direita, esquerda, centro, borda (para os terraplanistas), todos unidos por um só propósito: alcançar uma tal excelência. Eis o novo sentido para a vida (acadêmica?). O simples, o suficiente, o necessário cantado pelo urso Baloo do desenho animado Mogli: is over!
E esse corre-corre desenfreado aparenta ser paranoico, neurótico e até esquizofrênico. Os celulares estão sempre a chamar, a lembrar, a exigir respostas ou curtidas, a determinar a cronologia das presenças e dos lugares… e também das ideias. Parece não haver lugar nem tempo para o sossego. A crítica ficou para depois do cumprimento das metas e da garantia do quinhão. A discussão sobre o plano individual docente foi negligenciada em detrimento da correria para as progressões. Afinal é o fruto do trabalho … cristão!
E foi nesse ambiente, nesse caos, que as normas e as diretrizes foram sendo construídas, jogadas para consultas democraticamente atropeladas e aprovadas nos chamados conselhos superiores sem uma discussão profunda e profícua, verdadeiramente construtiva. Na verdade, no ambiente da produtividade não cabe pensar, apenas fazer. E é claro que tudo foi feito para um “bem comum”.
Departamentos e coordenações não protagonizam as discussões. Uma vez assentados nos tais conselhos superiores, fazem o que tem que fazer: votam. Professores não podem parar para discutir e construir ou porque vivem assoberbados do fazer ou porque pensar não pode ser computado no famigerado PID, tão pouco para a progressão. O que conta mesmo é o quantum. Quallis é a grande fake.
Há quase uma década atrás eu dizia que a UFMA estava sendo mudada por dentro. Eram as normas que estavam sendo alteradas, cada uma estrategicamente articulada com a outra, construindo uma forma de ser e de acontecer. Mas progressistas e esquerdistas, contaminados pela cegueira branca do ensaio do poeta Saramago, gastavam suas palavras de ordem e seus bordões dirigindo-os para as estruturas de concreto erigidas “docemente” pelo então salgado reitor. Ressalto que até o Campus do Bacanga deixou de ser. Foi extinto na verdade e transformado numa “nova” alegoria. Mas um amigo bem disse que minha voz não encontra ressonância, não faz eco.
Valei-me Pierre Bourdieu! Não virou santo nem sequer operou um milagre, mas nos deixou como legado sua inteligência e sua capacidade crítica. É dele o pensar que diz que o real é uma estrutura estruturante e também estruturada. A mensagem estruturante é codificada e enviada. No e pelo senso comum é processada, decodificada e reificada. É assim que os sentidos de verdade são produzidos, pela legitimação. E esse é o prato principal dos legalistas e formalistas. Estes são os agentes de preto (MIB) que cuidam da vigilância do sistema. Eles policiam, comparam, reafirmam a deusa lei, a norma, a resolução. Os dispositivos normativos tornam-se assim num real absoluto.
“É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar…” (Salve Chico Buarque de Holanda!). Uma crítica insistente e cuidadosa à cega obediência às normas pode despertar sentimentos e pensamentos incrustrados na nossa história que há muito deveríamos ter enterrado. Como exemplo parafraseio o slogan fascista dos anos 1970: “Brasil, ame-o ou deixe-o se não quiser cumprir as normas”. Um MIB jamais enfrenta a norma ou a resolução. Ele cumpre e quer fazer cumprir. Ele não quer ver o outro como outro. Invoco Caetano Veloso para explicar: “é que Narciso acha feio o que não é espelho…”. É esse o resultado palpável e perene da formatação acadêmica, do ego envaidecido por dr., por pós doc., etc. Eis a transformação do sujeito em objeto. Do homem em “funcionário da máquina” (expressão cunhada na metade do século passado pelo filósofo Vilém Flusser).
E agora passaremos a ser, talvez mais rápido do que possamos imaginar: “agentes públicos”. Essa é a designação do “manual de conduta do agente público civil do poder executivo federal” que certamente todos devem ter recebido no último dia 2 de março. Isso era literalmente o que faltava. Primeiro a engenharia dos dispositivos normativos e a consequente acomodação dos corpos (a mente deve estar junto). Em seguida “o mítico” envia sua tábua de mandamentos. Espero não abusar do pensamento alheio, mas acho que é possível refazer o pensamento de Thomas Hobbes e dizer: o homem torna-se homem do próprio homem. Acho ainda pertinente lembrar o título de um ensaio da professora Carmem Lúcia Soares que data de há muito tempo: “O enquadramento do corpo pela lógica do trabalho”. Preciso e cirúrgico.
Com o fito de provocar algum desconforto e alguma reflexão, espero sinceramente não termos de escrever em breve algo do tipo: “É ISTO UM HOMEM? (Primo Levi).
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[i] Professor do Departamento de Educação Física da UFMA